Afonso Cruz: “O maior desejo da realidade é tornar-se poema.”

CRÓNICA
| Rui Miguel Rocha

O primeiro livro de 2025. Um livro de viagens, de memórias e testemunho. Sobre fins. A morte. Tudo o que acaba começa, tudo o que começa acaba ou antes de acabar é já em si um começo, assim como começar é já em si um fim.
Santiago do Chile a ferro e fogo, duas situações limite de quase morte. Não uma nova oportunidade, apenas a vida a triunfar e a continuar. “O abismo entre o nada e a alma humana.”
As mulheres de Calama à procura dos corpos dos filhos e familiares e amigos enterrados anónimos no deserto de Atacama.
A criação e a arte face à efemeridade da vida “a arte é uma teimosia, a mais bela teimosia humana.”
O fim das línguas , nunca visto como uma possível aproximação entre os homens, a nova Babel até ao céu, antes a perda de modos diversos de nomear, “cada língua cria os seus próprios problemas e as suas próprias soluções “. Há muitas formas para nomearmos paisagens, animais, situações, pessoas, estados de alma. Há tantas como as que ainda nem sequer foram inventadas. É para isso que serve a diversidade, é também para isso que serve a vida.
E será a vida “uma intermitência da não-existência”? Ou é o que dá valor à inexistência? Seremos nós, depois de mortos, o mesmo que éramos antes de estarmos vivos? A efemeridade da vida contra o infinito de um instante. Como diz “na sentença de Saint-Exupéry” que, aliás, dá o titulo ao livro: “não é a cera da vela que fica, é o que a chama iluminou.”
O livro sobre fins, reforçado pela ideia de sermos responsáveis por algo belo que nos foi dado e que um dia acabará quando a última memória do último que se lembrar de nós acabar (uma ideia perigosa de demência).
No meio de tudo um retrato negro da humanidade na América do Sul, onde também se vai pescar alguma esperança. Tempo ainda para divagar entre o público e o privado num antagonismo entre deus e o diabo, sabendo nós que os deuses podem ser maus e os diabos podem ser como as bruxas: apenas mulheres independentes e esclarecidas atiradas às chamas de uma impossível vontade de um qualquer deus.
Mas acaba bem, como seria bom que todos acabássemos “O maior desejo da realidade é tornar-se poema.” Depende, caro Afonso. Infelizmente depende muito de quem passeia pelas cercanias.
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Afonso Cruz
O que a Chama Iluminou
Companhia das Letras  16,65€

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