Diário: “Pensamentos, sonhos, ficções, comentários de si, acontecimentos importantes ou insignificantes”


[Foto: Alfredo Cunha]

1-Qual a ideia que esteve na origem deste livro Rei Exilado (Diário 2019-2021)?
R-Tal como acerca da narrativa, considerada por Maurice Blanchot: “(…) não o relato do acontecimento, mas o próprio acontecimento”, o diário, diz ele: “aparentemente tão desprendido das formas” tende a estabelecer “um pacto” com o sujeito que o assina, ao ponto de tudo (ou quase tudo) nele caber: “(…) pensamentos, sonhos, ficções, comentários de si, acontecimentos importantes ou insignificantes (…)”, conforme a cláusula que, embora pareça leve, é temível: deve respeitar o calendário que, segundo o autor de Le livre à venir (1959): “(…) é o seu demónio, inspirador, compositor provocador e guarda.” Acontece, todavia, que a diarística, concretamente visada em Rei Exilado|diário 2019-2021, decorrente do período que vai do início do ano em que a Covid-19 viria a revelar-se/ rebelar-se o pesadelo anunciado, longe de manifestar-se sob o signo da intimidade, nem sob a protecção do anjo que rege ou norteia o real quotidiano, não (cor)responde à necessidade de manter em dia a experiência do confinado, mas a devastação física e emocional que, de modo alarmante, derrubou códigos de conduta, rompeu fronteiras, dizimou probidades, até então supostamente inabaláveis para o mundo e para a existência humana. Ao contrário do exercício de escrita com/firmado nas edições de Destino de Orfeu (1987), A invenção do adeus (1994), Minha mulher a solidão (2015), Minha ex-mulher a solidão (2020), o desenvolvimento diarístico de Rei exilado (2022) viu-se confrontado com contínuas mudanças de direcção; com a necessidade de conter a onda de incomunicabilidade que se foi instalando entre a obra e quem a escreve; de estancar a hemorragia social que a fragmentação das consciências fora deixando à mercê da angústia colectiva, e por que não ?, com o descontrole dos sentimentos que, no texto: Dieu, la mort et le termps (1995), Emmanuel Lévinas, considera  apta para avaliar o desempenho do ser-no-mundo.

2-No subtítulo lemos que se trata de um “diário 2019-2021” mas as datas concretas estão omissas. E assim percorremos os 389 textos (389 dias?): quis mesmo que este diário não fosse datado?
R-Dando como provado que o corpo humano se constitui como aquele micro-universo que, segundo a sabedoria oriental, na sua vertente astrofísica, integra o macrocorpo do Universo, o acto da escrita, independentemente do género a que dá curso (formal e conteudístico), convoca, senão no todo, em parte, a matéria que gravita na Natureza, dotação partilhada pelos seres, agregando cadências cósmicas, enquanto essência do absoluto, enquanto finitude da infinidade que a ordem cósmica representa. Sem declinar das regras que conduziram o processo de escrita, que deu fundamento à elaboração deste diário, durante três anos, abrangidos pelo tempo narrativo que lhe subjaz, a exposição à vertigem, que a conjuntura endémica foi propagando a cada hora, a grande parte da humanidade, sob o efeito da mais imprevisível das doenças, a peste, tornou-se factor determinante no quadro das configurações verbais, dispositivos retóricos e no plano das mediações interpretativas com que cada registo, em última instância, contribuiu para a conjuntura e construção estrutural da obra, o que explica a substituição do tempo cronológico pelo tempo emocional, entre outras razões com a finalidade de fazer coincidir a ordem do discurso com a ordem do real. Rei de toda a incoerência, do muito desta dispersão, como no poema de Mário de Sá-Carneiro, talvez nenhuma desculpa poderá assistir ao diarista para resistir ao que Artaud, na conferência Le theâtre et la peste (publicada em 1934, na Nouvelle Revue Française) qualifica de “tempestade orgâncica”, ao manisfestar: “(…) nos sítios do corpo a sua presença”; afectando: “(…) todos os sítios do corpo; todos os lugares do espaço físico que têm vontade humana, a consciência e o pensamento (…)”. Eis porque, neste diário, tal “tempestade orgânica”, em tudo idêntica à referida pelo autor de Le Pèse-Nerfs (1925) viria a recair sobre o corpo da escrita. Abandonando a ideia de fazer de Rei Exilado “a experiência criadora” a que Franz kafka, nos Diários (1910-1923), não deu sequência, optando pelo secretismo, que caracterizou de resto o conjunto da sua obra, para me aproximar da “experiência de escrita” com que Sylvia Plath, em The Journals (1950-1962),  decidiu ocupar as suas: “(…) horas de ócio a cultivar”, não sem alguma obstinação, aquele: “(…) estado de espírito que recusa sonhar, imaginar ou fazer conjecturas sobre qualquer outra situação que não a da realidade presente”, não foi sem sobressalto que esta (con)sequência diarística, de modo diferente do tentado nos quatro volumes já publicados, acolheu nas sua páginas o efeito da trama transformadora que as correspondências físicas e metafísicas instauraram numa ordem social abalada nos seus procedimentos, preceitos e formas de espiritualidade, em contramão com o descaro da desonestidade intelectual (falo por mim, em primeiro lugar) que tem sido o silenciamento dos escritores portugueses vs. das instituições que os representam, ante o aniquilação/ genocídio total do povo ucraniano, seus escritores e artistas.

3-Pensando no futuro: o que está a escrever neste momento?
R-Como quase sempre acontece nos períodos que se seguem às fases de prolongados abalos emocionais, a perda de rumo deixa de ser mera formalidade, para se tornar exacerbação, requerer autorreflexão crítica, obrigar a uma mais aturada questionação deontológica, sob pena de ceder a jogos de interesse ético (e político), bem como de retirar importância às razões que levam o escritor a dar ouvido(s) a canto(s) de sereia com que a mercantilização da cultura (e do livro, em particular) trivializa/tiraniza a acção dos bajuladores/ The Flatterers (para referir o quadro de Brueghel the Younger, 1592, que faz capa da edição de Rei Exilado), atraídos pela miragem de editar em chancelas sem escrúpulos e se abastardarem com prémios que não merecem. Assim sendo, mais se justifica o regresso a leituras adiadas; à disponibilidade para trazer de volta o que, lido em tempos, se deliu nos palimpsestos da memória; à análise de “acontecimentos” que, conforme anotou Sylvia Plath nos seus diários: “(…) começam por se destacar em relevo – à medida que envelhecemos – adianta a autora de Ariel (1965) – para depois se baralharem como cartas”. De janeiro a esta parte, escrevi dois livros de poesia com que, há muito, tencionava cumprir o desejo infanto-juvenil de evocar Sebastião da Gama, sem esquecer  Joana Luísa, sua companheira de sempre, senhora que ainda conheci, na antiga Escola Veiga Beirão, ao Largo do Carmo (graças à mediação da queridíssima Matilde Rosa Araújo, amiga do casal); e, assim, me dar ao cuidado de completar o ciclo deixado em aberto desde 1991, data da publicação do tão afortunado livrinho: A cor das vogais (Porto Editora, 2013), actualmente tornado tesouro do imaginário infantil português, mercê da inclusão: anteriormente, nas Metas Curriculares; agora, no Plano Nacional de Leitura. Intitulam-se: O berço da voz, verso do poeta da Arrábida; e O som das consoantes, para fazer par com o poemário: A cor das vogais, a colectânea que nenhuma editora, e para que conste, acolheu quando, em 1990, o sujeitei à apreciação editorial de vários editores. À parte isso, tenho estado a aprimorar as traduções de The Waste Land e de Four Quartets, que me atrevi, em tempos, a “mudar para português”, expediente que Herberto Helder, possivelmente, não reprovaria, por ter ousado desafiar o colosso poético que a poesia de T.S. Eliot constitui.
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Vergílio Alberto Vieira
Rei Exilado (Diário 2019-2021)
Crescente Branco

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