Isabel Nery: “Estiveram unidos numa missão comum: acabar com a ditadura”

P-Qual a ideia que esteve na origem deste seu livro «Os 5 Homens que Mudaram Portugal para Sempre»?
R-O livro surge no contexto dos 50 anos do 25 de Abril e da democracia portuguesa. Depois do golpe militar foi preciso construir uma democracia onde ninguém tinha conhecimentos práticos porque os ditadores (Salazar e Caetano) tinham prendido, morto ou exilado quem criticava o regime. Agora eram precisos os políticos e os partidos. Dois destes cinco homens, Soares (PS) e Cunhal (PCP), lideravam partidos na clandestinidade, outros dois, Sá Carneiro (PPD-PSD) e Freitas do Amaral (CDS) criam partidos logo após a revolução. Todos eles fizeram parte de governos fundadores da democracia. Eanes é o primeiro Presidente da República eleito depois do 25 de Abril. Biografar estes líderes na fase da transição democrática portuguesa é, além de fascinante, absolutamente vital para compreendermos que país fomos nos últimos 50 anos. Com isso, teremos mais ferramentas para decidirmos sobre os próximos 50.

P-Portugal e a política portuguesa têm, ainda hoje, a marca destes políticos?
R-Absolutamente. Por isso é ainda tão atual, apesar de passado quase meio século, estudá-los. É preciso não esquecer que os partidos criados por alguns destes homens continuam a ser os que governam o país.

P-Que factos ou acontecimentos mais a surpreenderam ao escrever as biografias destes 5 homens?
R-O que mais me surpreendeu foi perceber como tinham muitas coisas em comum, apesar de liderarem partidos políticos tão opostos como o comunista ou o democrata cristão, por exemplo. Todos eles tiveram educação católica, quatro deles (Soares, Cunhal, Sá Carneiro e Freitas do Amaral) eram de famílias de classe média-alta e estudaram direito. Eanes é o único que vem de uma família muito modesta e que opta pela carreira militar. À exceção de Soares, todos passam pela experiência traumática da perda de um ou mais irmãos durante a infância, marcando a vida familiar. Apesar das imensas diferenças de personalidade e convicção política, naquele período de transição, entre 1974 e 1976, estiveram unidos numa missão comum: acabar com a ditadura. Sem esse ponto de união dificilmente se teria feito uma mudança tão radical sem vítimas significativas.

P-A nível pessoal, Álvaro Cunhal, Freitas do Amaral, Sá Carneiro e Mário Soares não podiam ser mais diferentes. Mas, do seu ponto de vista, há, contudo, traços comuns seja na personalidade seja na forma de intervenção política?
R-Álvaro Cunhal e Mário Soares foram “gémeos” na resistência e combate à ditadura. Na juventude, Soares começa até por pertencer ao PCP, mas depressa percebe que não é esse o caminho que quer por entender que o comunismo restringia demasiado as liberdades individuais. Em termos de personalidade, tirando a resiliência, pouco ou nada têm em comum. Para Soares, família e política eram interdependentes. Para Cunhal, o partido era o centro e a vida pessoal envolta em secretismos. Soares gostava de se apresentar bon vivant, Cunhal poupado, austero e sério. Freitas do Amaral e Sá Carneiro tinham ascendências sociais com várias semelhanças: ambos do Norte, juristas, com pais que tinham sido deputados da Assembleia Nacional da ditadura. Entenderam-se sempre bem, ao contrário de Cunhal e Soares. Ramalho Eanes é um político inesperado, que bebe na retidão militar e choca com os jogos do sistema político, sobretudo no segundo mandato enquanto presidente.

P-Uma pergunta um pouco especulativa: agora que tem uma visão de conjunto e já passaram mais de 40 anos, o que teria acontecido se Sá Carneiro não tivesse morrido em 4 de Dezembro de 1980?
R-De facto, é impossível prever esse passado. No entanto, olhando para os factos podemos especular com algum grau de certeza que se abriria uma crise política, já que Sá Carneiro tinha prometido que se demitia se Ramalho Eanes ganhasse as eleições presidenciais, o que veio a acontecer, com margem confortável, aliás. Portanto, menos de um ano depois do feito, então inédito, de ter conseguido unir a direita na Aliança Democrática (AD) e constituir governo, tudo poderia mudar de novo. Sá Carneiro era um homem combativo e convicto, mas era também algo repentista e pouco dado à negociação, o que em política poderia vir a ser problemático, sobretudo no cenário de demissão que ele próprio tinha desenhado, e em que era secundado pelo seu principal membro de coligação, Diogo Freitas do Amaral, do CDS.

P-O seu livro fala em 5 personalidades que marcaram a história de Portugal. Ao longo do tempo, no entanto, várias vezes se falou de «números dois» que podem ter tido um papel muito importante ainda que menos visível: Amaro da Costa, Salgado Zenha ou Melo Antunes, por exemplo. Nesta sua pesquisa, conseguiu encontrar o rasto de algum destes nomes?
R-Sim, todos eles foram fundamentais neste período e na vida dos cinco homens que retrato, embora tenham perdido alguma visibilidade histórica. Adelino Amaro da Costa era a força motriz do CDS, o seu ideólogo. Torna-se amigo de Freitas do Amaral durante o serviço militar e, a partir daí convivem como irmãos. Freitas do Amaral era mais reservado e cerebral, enquanto Amaro da Costa gostava do contacto com as pessoas e tinha uma intuição especial para a política. Muitos dizem que o esperava um futuro brilhante se não tivesse morrido prematuramente, aos 37 anos, no mesmo acidente que matou Francisco Sá Carneiro. No PS, Francisco Salgado Zenha tinha o mesmo tipo de amizade com Mário Soares, sendo até padrinho da filha do líder socialista, Isabel Soares. Foi um elemento crucial na fundação e afirmação do Partido Socialista e Soares garante até que deveria ter sido ele o primeiro-ministro do primeiro governo eleito, em 1976, mas que o secretariado do partido não esteve de acordo. No entanto, por razões ainda hoje pouco claras, Salgado Zenha zanga-se com Mário Soares e corta relações com o melhor amigo, nunca reatadas, apesar dos esforços de vários amigos comuns. Ernesto Melo Antunes foi o cérebro político do 25 de Abril, aquele que acrescentou conhecimento e estrutura filosófica à força militar, permitindo que a revolução não fosse apenas um golpe, mas sim uma mudança efetiva, com objetivos sociais e não um mero derrube do poder. Mais tarde, no 25 de Novembro é quem contribui decisivamente para que o PCP não seja banido da democracia portuguesa, garantindo com isso que não se instalaria um clima de rancores e vinganças palacianas. Ou seja, contribuindo decisivamente para a pacificação pós-revolução.
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Isabel Nery
Os 5 Homens que Mudaram Portugal para Sempre
Publicações Dom Quixote  21,90€

Isabel Nery na “Novos Livros” | Entrevistas

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