Linn Ullmann: Todos inquietos, todos diferentes, todos unidos

CRÓNICA
| Célia Gomes

Um triangulo escaleno, formado por três vértices; um pai, uma mãe e uma filha. Todos inquietos, todos diferentes, todos unidos por um denominador comum, Hammars. Um pai realizador de cinema, pontual, sonhador, colecionados de mulheres e de filhos, com um alfabeto próprio, que lê muito, que vive em estado musical e que deseja escrever as memórias dos seus últimos anos de vida, em suma, um verdadeiro cronópio, conforme o classificaria Cortázar. Uma mãe atriz, imprevisível, ofuscante, que faz da vida uma peça de teatro ambulante, ondulante no amor, musa inspiradora do pai e também o seu violino, «o pai costumava dizer à mãe que ela era o seu Stradivarius. Ou seja: um instrumento de qualidade superior com um som potente e claro» (Não serão todas as mulheres Stradivarius?).  E a menina, a narradora.  A menina vestida de azul, a menina fruto do amor efémero, intenso e teatral do realizador com a atriz. A menina frágil, a menina magra e obcecada pela mãe. A menina sem  nome até aos dois anos, e mesmo após essa data, sempre apelidada de «menina». A menina que faz listas nos diários. A menina observadora, arrastada pela lava do vulcão que é a mãe. A menina que cresceu, como todos nós crescemos. A menina que se casou, como muitos de nós casamos. A menina que se divorciou, como alguns de nós nos divorciamos. A menina que de novo se apaixonou perdidamente, como todos nós nos apaixonamos, irreversivelmente, pelo menos uma vez na vida. A menina que lê Virginia Woolf e Tolstói como poucos de nós lemos. A menina que gosta de recordar, «recordo nomes, rostos, palavras, datas, sítios, conversas, acontecimentos, namorados, compromissos, livros que li, canções que ouvi, recordo artigos que eu própria escrevi». Quem não gosta de recordar? A menina que desde que tem memória passa férias em Hammars. Hammars, o palco de todas estas histórias de amor. Amor passional entre o pai e a mãe «ambos filhos pródigos. Irmãos da noite», crianças que já muito tarde foram «expulsas do quarto dos brinquedos». Amor passional que findou, mas recordando Vinicius, foi eterno enquanto durou, «amo-te, não te amo, podia amar-te, amei-te, nunca amei ninguém como a ti». Amor entre o pai e as restantes mulheres que aí passaram, mas não permaneceram. Amor entre o pai já velho e a menina.  Hammars, onde «nada mudava. Ou, as mudanças ocorriam de uma forma gradual que ninguém reparava nelas. (…) Onde os verões eram todos iguais», onde a menina se escondia no armário de secar a roupa, onde o pai andava de jeep vermelho, onde se viam filmes sem conta e se falava de filmes, onde se comemoravam aniversários.  Hammars, onde o pai foi envelhecendo e constatando «que as palavras lhe desapareciam» e, por isso, planeou com a filha escreverem um livro em conjunto sobre memórias, sobre envelhecer. Hammars, onde se comem omeletes a toda a hora enquanto preparam o livro  gravando desabafos e confissões, «penso que envelhecer é um trabalho árduo, pesado, sem charme e com jornadas muito longas», onde florescem perguntas «O que dirias a ti mesmo acerca dos sonhos que tens constantemente?». E nós o que diríamos? Hammmars, onde se fazem e lavam  feridas, onde se encena, como escreve Proust, «o teatro da morte que é o funeral». e onde duas gerações de meninas rodopiam ao vento e se riem. Linn Ullmann não escreve sobre esta terra, antes a fotografa, capturando consecutivas  imagens com a objetiva. E nós leitores, não lemos palavras, mas sim «lemos» imagens. Verdadeiras fotos, que a escritora vai tirando do baú do tempo à medida que a “menina” entrevista o pai e revê a sua própria vida, desnudando, vestindo e agasalhando memórias «olho as fotografias dos meus pais e pergunto-me quem são e foram, será que os trago dentro de mim, tiveram respostas para tudo aquilo que perguntaram, sentiram que o tempo lhes escapava como a mim me escapa?». Para além de fotografar memórias, Ullmann utiliza o melómano  realizador,para, com leveza, povoar o livro de música. São sinfonias completas – de Bach a Bethoven-, passando por Schubert, Chopin e Mozart- que dão leveza e elegância ao livro. «Deus está onde está a música. Penso que os grandes compositores nos transmitem as suas experiências com Deus». Talvez seja a música, talvez as descrições fotográficas, talvez a poesia e intelectualidade presente que transforma esta obra, com um tema tão delicado como é o envelhecer, numa ode à vida, à  arte e ao amor.
E já que falamos de música, num dos atos da ópera Flauta Mágica, de Mozart, o príncipe Tamino, desesperado, pergunta se em breve haverá luz e o coro responde: «em breve, em breve, ou nunca mais». Neste livro há luz, muita luz e quem o lê sai da escuridão.
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Linn Ullmann
Os Inquietos
Relógio d’Água  19,50€

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