Miguel Calado Lopes: “Comecei a escrever desconhecendo o fio da meada, não sabia o que ia escrever.”
1-Qual a ideia que esteve na origem deste livro “Uma História Sem Pés Nem Cabeça”?
Miguel Calado Lopes-Nem sei bem, para dizer a verdade. Depois da recolha de dezenas e dezenas de frases idiomáticas, que fui guardando e após consulta exaustiva do muito bom Dicionário Aberto de Calão e Expressões Idiomáticas, de José João Almeida, da Universidade do Minho, surgiu o nome de Zé dos Anzóis durante uma conversa com Francisco Belard, amigo e antigo colega do jornal Expresso onde desempenhei funções de editor durante cerca de 20 anos. Foi ele quem reviu o original do meu primeiro livro, O Grande Chef Caseiro na Mão Delas, uma sátira acerca da evolução do conceito de masculinidade. Como qualquer jornalista ou escritor sabe, o drama do papel em branco reside no “lead”, ou seja, o parágrafo de arranque de uma notícia ou de uma história suficientemente forte para captar de imediato a atenção do leitor. Quando decidi escrever uma história em português idiomático, coloquei na minha mesa de trabalho todas as frases que tinha organizado segundo temas, significados, subentendidos, duplos sentidos, sentidos figurados, etc. Tendo o protagonista na cabeça, julgo ter pensado que um Zé dos Anzóis a “deitar-se com as galinhas”, ou seja, deitar-se cedo, poderia ser um bom começo. Dar-me-ia a oportunidade de o pôr (a mim e a ele enquanto personagem, o que é sempre um processo distinto) a pensar nas atribulações da vida. Depois, a narrativa foi surgindo ao sabor da minha arrumação aleatória dos idiomas. Comecei a escrever desconhecendo o fio da meada, não sabia o que ia escrever. Só mais ou menos a meio é que tive a ideia de um fim possível porque já tinha menos frases para utilizar. Mesmo assim, o final da história não foi o mesmo que eu tinha imaginado quando ia a meio da escrita.
2-Como surgiu o seu interesse pelas expressões idiomáticas?
MCL-Comecei a minha carreira jornalística de 40 anos em 1974 no extinto jornal A Capital. Integrei desde cedo a secção internacional tendo ficado responsável pela leitura e seleção dos artigos que o jornal americano The Washington Post enviava mediante acordo de exclusividade. Nessa qualidade fiz muitas traduções do inglês e, mais tarde, editei traduções de profissionais externos. Numa delas deparei com o nome feijão verde (“green bean”) numa frase em que não fazia nenhum sentido. Feitas as pesquisas nos meus dicionários de inglês-inglês, um deles de calão, conclui que a tradução certa seria uma pessoa alta e magra, o que fazia sentido na frase. Por outras palavras, o tradutor devia ter escrito a correspondência idiomática portuguesa, ou seja, trinca-espinhas, pau-de-virar-tripas ou espirra-canivetes e não feijão verde. Lembro-me de ter achado maravilhosa a riqueza e a graça da expressão. A partir daí, comecei a colecionar frases. Não me lembro de ter alguma vez pensado em escrever um livro só com elas. Mudei de jornais diversas vezes, as frases acompanharam-me mas depois perdi-as e delas fiquei com uma memória vaga. No entanto, mantiveram-se ao longo dos anos num recanto das boas intenções porque, de vez em quando, lá surgia o feijão verde… Sabia, isso sim, e desde sempre, que a riqueza e a graça da frase idiomática teria de ter a mais-valia da ilustração. Pretendia escrever uma espécie de dicionário ilustrado. Por isso é que, por baixo de cada ilustração, há um tracejado para que o leitor possa escrever, por exemplo, o que significa tirar o cavalinho da chuva. Foi talvez há uns oito ou nove anos que me meti ao trabalho. Parágrafo hoje, parágrafo dali a um mês, consoante a minha disponibilidade e outros afazeres domésticos e jornalísticos. No âmbito de um conjunto de 30 crónicas escritas durante um mês para a edição online do jornal Expresso durante a pandemia, parte da história viu finalmente a luz do dia, melhor dizendo, a luz do ecrã. Mais tarde, estando a trabalhar com Francisco Bordallo, o designer deste livro, no grafismo de A Natureza da Viagem onde reúno, entre outros textos, as minhas principais reportagens um pouco por todo o mundo, falei-lhe deste projeto. Pesquisámos juntos e em boa hora encontrámos a Mariana Crisóstomo.
3-Um trabalho desta natureza acompanhou-o ao longo de muitos e muitos anos. Esse facto e a riqueza da língua portuguesa significa que vamos ter um segundo volume desta obra?
MCL-Por norma, nunca devemos dizer desta água não beberei. Não me parece, mas nunca se sabe. Desencasquei uma história que há muitos bailava na minha cabeça, mas tenho outras ideias encasquetadas. Há cerca de dois anos que digo a amigos que estou a escrever um livro, e de facto estou, mas ando a fugir dele porque não estou a conseguir estruturá-lo. Antes de iniciar a escrita passei três meses a investigar e a tomar notas. O processo criativo (aprendi-o a custas próprias) tem de andar à solta e preso ao mesmo tempo, por assim dizer. Se deixarmos as personagens à solta, elas seguem o seu próprio caminho, deixando o autor atado por não ter meios para as agarrar e fazer voltar ao enredo original. A recolha de frases idiomáticas é um trabalho penoso e moroso. Seria sempre engraçado escrever outra história com outras expressões e outras ilustrações. Também seria engraçado escrever uma sequela desta história. A dificuldade de uma continuação coerente residiria, não na narrativa propriamente dita, mas na preservação do humor que uma história idiomática deve ter.
4-Como foi pegar neste desafio de “traduzir” para ilustração as expressões idiomáticas que o Miguel organizou nesta história?
Mariana Crisóstomo-Foi absolutamente delicioso. Já tinha ilustrado cerca de 72 destas expressões para o meu projeto pessoal chamado “Portuguese Sayings That Make Absolutely No Sense”. Foi através desse meu portfólio que o Miguel viu o meu trabalho e me contactou. Criar as ilustrações para a história do Miguel foi ainda mais divertido porque a história está com muita piada. Uma das partes mais interessantes para mim foi a criação dos personagens.
5-Já pensaram em repetir esta dupla noutros projectos: o que se poderá seguir?
MCL-A ilustração, especialmente a da Mariana, poderá ser sempre uma mais-valia para um livro. Gostaria imenso de voltar a colaborar com ela. Há vários exemplos de “travel stories” e livros de viagens que têm ilustração em vez de fotografia. Dou-lhe um exemplo de possível criatividade gráfica: escrevi há um ano para o jornal Público um grande artigo sobre a grande exposição de Vermeer em Amesterdão. Ficaria graficamente mais criativo se, em vez das reproduções dos quadros já muito conhecidos, se optasse por umas aguarelas, por exemplo. Na altura não conhecia a Mariana. Estou atualmente enredado noutro livro passível de ilustração. Talvez, nunca se sabe. É uma questão de pensar no tipo de grafismo a utilizar.
MC-Ainda não pensamos em nada concreto, mas tenho a certeza que irá surgir uma nova colaboração. _________
Miguel Calado Lopes (texto)/Mariana Crisóstomo (ilustrações)
Uma História sem Pés nem Cabeça
Primeiro Capítulo 13€