Miriam Toews: O imperativo de sentir a alegria
CRÓNICA
| Célia Gomes
Peguei na «Noite de luta», contemplei pausadamente a sua capa negra e afaguei o três perfis nela desenhados. Perfis femininos, que vencem a negritude nela semeando cor e estrelas. Três gerações de mulheres que lutam. Lutam pela vida, lutam pela esperança, lutam pela alegria. «O imperativo de sentir alegria. De encontrar alegria e de criar alegria pela noite fora. A noite de luta.» Talvez seja esta a frase bandeira do livro e que o resume. Três mulheres grávidas e que lutam. Sem elmo, sem espada, sem outras armas bélicas que não seja a sua força. A mais velha, uma avó, Elvira, grávida de uma alegria que a veste de vida e que é mais eficaz que os comprimidos que espalha pelo chão. Luta com a foice que a esconde da morte para que esta não lhe ceife a vida (até um dia…). A segunda mulher, uma mãe, verdadeiramente grávida de uma menina. A mãe que «despacha o trabalho emocional de toda a família, sentindo tudo dez vezes mais do que o necessário, para que os restantes possam comportar-se normalmente». A mãe que se reconstruiu «regressou à vida. Encontrou.se nas fotografias, Reconheceu-se. O fogo interior. A brasa incandescente.» A ultima, Swiv, a menina que está grávida de interrogações – quem não está? Que luta com a caneta escrevendo cartas. Cartas à futura irmã, cartas ao pai ausente. Aliás este livro é uma longa carta ao pai, em que a filha lhe conta o quotidiano familiar, selecionando momentos, memórias e dias de luta. Swiv que ajuda a avó a andar, a respirar, a viajar (se é que respirar e viajar não são sinónimos…). A avó, infantil e imatura, que polvilha a vida de Swiv de magia, de aventura e de esperança. Que rasga livros para os ler «a meias» com a neta. E mulheres que leem são mulheres que não envelhecem pois renascem em cada leitura. John Steinbeck escreveu que «é motivo de estranheza que, com a idade, a tristeza não aumente necessariamente». Esta avó é prova disto. E Miriam Toews descreve esta família e suas aventuras, com graça, com a leveza do colher flores silvestres e as colocar em jarras de metáforas para não murcharem. Com esta seiva fluida pinta emoções e o ciclo da vida. Sim, toda a obra é uma espécie de «Rei Leão», sem Mufasa, sem Simba, sem Scar mas com um Rafiki, que é a avó homenageada pela autora e transbordante em fantasia e bioluminescência. «Todas temos um fogo interior, e também a obrigação de não o deixar apagar». «Tenho vídeos da avó. Num deles perguntei-lhe o que vai acontecer ao seu corpo depois de morrer. Ela responde: ahhh! O meu corpo O meu corpo vai transformar-se em energia para iluminar o teu caminho». Não será o que todos desejamos? Iluminar o caminho de alguém após a morte e também em vida? Confesso que no final do livro, quando o fechei e continuei a contemplar a sua negra capa, também eu lutei muito. Lutei «com unhas e dentes» contra as lágrimas que que nos meus olhos teimavam em bailar. Drummond de Andrade escreveu que «só é lutador quem sabe lutar consigo mesmo». Desta vez não o soube, mas aprendi que não vale a pena lutar contra uma coisa poderosa chamada emoção.
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Miriam Toews
Noite de Luta
Alfaguara 18,45€