Rita Cruz: “Saramago tinha coisas para dizer, para lá das que escrevia”
1-No ano do centenário de José Saramago, qual o principal legado do escritor?
R- Não tenho competências para analisar o legado de Saramago na literatura portuguesa e se fingir que as tenho vou cair no ridículo. Posso falar em mim, pessoalmente, no que ele deixou em mim. Antes de mais, um orgulho imenso por ser nosso Nobel alguém com a escrita humana de Saramago. Quando lhe foi atribuído o prémio, eu estava em Bradford, na Inglaterra, e soube-o sentada numa sala de computadores. Posso confessar, se não me levarem a mal, que esse discurso foi a primeira obra que li dele. Comovi-me até às lágrimas, naquele espaço impessoal de luzes brancas e paredes despidas. Um ano e pouco depois, aterrei em Bogotá, na Colômbia, para cumprir uma missão de acompanhamento a defensores de Direitos Humanos, e nesse mesmo dia Saramago ia dar uma conferência num enorme anfiteatro. Não pude ir, porque não havia bilhetes: o anfiteatro estava cheio, uma multidão do outro lado do mundo, para o ouvir. Porque Saramago tinha coisas para dizer, para lá das que escrevia. Quem tinha conseguido bilhete, agarrava-se a ele e exibia, com a satisfação pecaminosa da inveja alheia. E foi então, na Colômbia, que li Saramago pela primeira vez. De certa forma, descobri o homem antes do escritor. E quando o li, confirmei o humanismo e maravilhei-me com o que terá sido outra marca que deixou em mim: acredito que, em algumas obras, Saramago não sabia o fim das histórias. Lançava-se a descobrir o que um “e se” lhe contaria a ele também. E creio que talvez às vezes julgasse que ia ser assim e depois descobria que ia ser assado. Quando eu, leitora, me surpreendia, fiquei sempre com a sensação de que ele se tinha surpreendido também. Pode ser que esteja errada, e que não tenha sido assim o seu processo de escrita. Seja como for, esta percepção que me ficou dos seus livros marcou-me e guiou-me.
2-Qual é o seu livro preferido escrito pelo nosso Nobel?
R-A ser tremendamente injusta com a sua obra, mas porque as preferências verdadeiras cabem ao coração e não à mente, selecciono A Caverna.
3-Razões dessa escolha?
R-A Caverna foi a minha descoberta de Saramago. Impressionou-me a humanidade da sua escrita, a simplicidade e maestria com que descodificava as injustiças deste mundo, e como trabalhava o real e o fantasioso sem nunca, como leitora, me perder. Foi precisamente na Caverna que o imaginei a descobrir a história comigo, leitora, à medida que a escrevia, e que avaliava Sim, faz sentido, ou Não, por muito que queiramos, o mundo real não iria deixar que o final fosse assim, pueril e feliz. E nunca encontrei uma mais brilhante descrição do absurdo dos nossos tempos do que aquela distopia de um mundo enfiado num centro comercial.
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Rita Cruz, Escritora