Matilde Campilho: Depois a flecha que une tudo

CRÓNICA
| Rui Miguel Rocha

Valeu a pena esperar pela Matilde. Esteve uns anos a acumular histórias, descobertas, pequenos suspiros, olhares e sons, aromas novos e ancestrais. Uns anos a acumular a vida toda, a nossa história desde que se começou a contar histórias numa caverna escura, na savana africana, num oásis do Saara ou num tipi índio.

Depois a flecha que une tudo, todos os seres humanos, todas as histórias: os habitantes do vulcão que gostam de ver fumo na montanha; “tudo aquilo que resta provém de um lugar muito posterior à espera”; o soldado que beija os olhos do companheiro morto e segue o medo; o suor debaixo do capacete do guerreiro aqueu; o maratonista que tem a mão da rapariga por meta; César constipado pré Covid a atravessar o Rubicão.

Mas também histórias que se fazem de silêncio: “nos melhores hotéis, assim como nos melhores bares, parece mesmo haver um acordo tácito entre os homens e o silêncio” ou o som que está na mulher que “atira um punhado de pó seco para cima do corpo morto do seu irmão” e o esquimó a pensar na tagarelice do homem branco, quando o que importa é ter carne suficiente para atravessar o inverno.

Quem de nós não sente falta de uma canção que não tivesse escolhido, quem de nós não se sentou já num rochedo, disposto a “esperar pela alegria”, ou “caminha até parar de caminhar. E sem pensar nas coisas, é cúmplice das coisas”?

Ou ser só testemunho de um barco onde estão todos mortos no oceano Índico e de uma miúda que enfia o dedão em cada meia para as tirar dentro da cama e as chutar para fora dos lençóis e aquele que, como todos nós, “coxeia, porque quando está triste coxeia.”

Nem que seja por dentro.

Adorei.
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Matilde Campilho
Flecha
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