
1-Qual a ideia que esteve na origem deste seu livro “Bonecos para o Povo. João Abel Manta, Artista Revolucionário”?
Pedro Piedade Marques-A ideia surgiu do facto de ter já havido dois catálogos para as exposições de 2024 que celebraram a obra do artista: “João Abel Manta livre” (no Palácio Anjos, de Algés) e “Uma coisa nunca vista” (Museu Abel Manta, de Gouveia). Este ano, por alturas da montagem da exposição “Bonecos para o povo” (SNBA, de Lisboa), entendi que se impunha produzir antes um livro que reunisse e expandisse algumas das minhas reflexões sobre o trabalho revolucionário de JAM (isto é, aquele feito durante o período revolucionário de 1974-75, bem como o anterior e posterior a este, mas com marcada carga política), e em que pudesse escrever sobre matérias que não pude abordar nesses catálogos (em particular, sobre o que é ou o que foi isso de ser um “artista revolucionário”, isto é, um artista que contribuiu com a sua obra para o desenvolvimento de um processo revolucionário, algo que muito poucos artistas ao longo do século XX conseguiram fazer). Tudo isto sempre com o eixo naquele arrojado cartoonde Maio de 1974, um repto aos artistas portugueses (o de pararem um pouco as pesquisas eruditas de galerias e fazerem “bonecos para o povo”) que tão mal recebido foi por alguma intelligentzia na área da crítica de arte, mas que o artista cumpriu de um modo espantoso na sua praxis incansável até, pelo menos, 25 de Novembro de 1975. O objectivo foi criar um livro que servisse, ao mesmo tempo, de uma espécie de “super catálogo” de algumas das peças expostas nessas três exposições e de obra de referência iconográfica sobre o trabalho de produção de imagens para uma situação revolucionária, trabalho que caiu “no colo” do artista e que ele resolveu de um modo brilhante.
2-João Abel Manta está intimamente ligado às imagens que ficaram para sempre da revolução do 25 de Abril: do seu ponto de vista como é que o artista “leu” e “traduziu” aquele tempo que viveu com entusiasmo?
R-A notável capacidade de João Abel Manta em ler e traduzir esse novo tempo em imagens foi consequência, para além da sua erudição e do seu talento, do facto de ter estado mais de quatro anos, sem interrupção, a produzir cartoons que traduzissem o complexo tempo que antecedeu o 25 de Abril, e que correspondeu ao consulado do herdeiro de Salazar, Marcello Caetano. JAM não se tornou no mais importante cartunista (e cartazista) do PREC por acaso: foi-o porque, entre meados de 1969 e Setembro de 1973, tinha já sido o mais importante leitor e “tradutor” em imagens do extertor do Estado Novo, e o único cartunista nesses anos a desafiar directamente a censura (como, antes dele, o tinham feito alguns cartunistas, durante o breve período entre a Ditadura Militar de 1926 e a fixação do Estado Novo em 1933). O processo que o regime lhe moveu no final de 1972, e que, apesar da absolvição em 1973, ditou o fim da sua activididade de cartunista (apenas retomada a 28 de Abril de 1974), provou que a acuidade do artista tinha atingido o alvo. Ele usou essa mesma acuidade no período revolucionário, e não apenas nas imagens que se tornaram “símbolos” desse tempo, como também em imagens mais desafiantes (como a que mostrava o Zé Povinho a acolher um homessexual na comunidade de portugueses libertos porque “a liberdade é para todos”) ou inquietantes (como a que mostrava uma família miserável a “ocupar” um palácio abandonado, e que nos dizia ser mais preocupante a atávica miséria dessas pessoas, que mais de um ano após o 25 de Abril não tinham ainda meios de melhorar as suas vidas, do que a ocupação propriamente dita).
3-Os “bonecos para o povo” são apenas uma parte da produção de João Abel Manta: que outras facetas considera mais importantes da sua obra?
R-A obra de “bonecos” na imprensa de Joao Abel Manta, dada a sua importância estética, social e política, acabou por “abafar” a sua restante obra gráfica e plástica, que foi de uma variedade incomum: o artista produziu obra relevante como desenhador, gravador, designer de moedas e selos, pintor, criador de têxteis, azulejos e calçada portuguesa, figurinista e cenógrafo de teatro, ilustrador de livros, para além de uma carreira de arquitecto premiado. Confesso que, por ter sido “apanhado” pelo seu trabalho nos jornais (já não o dos cartoons em jornais generalistas, mas os seus desenhos e colagens para o “Jornal de Letras”, em 1981), é este que mais me fascina, até pelo facto de concentrar várias das valências gráficas do artista e de ser aquele em que quase conseguimos acompanhá-lo a pensar, ou em que sentimos que ele nos acompanha ao longo do seu processo mental de criação das imagens. Espero ser possível, em 2028, o ano que marcará o centenário do seu nascimento, produzir-se um livro que mostre e comprove esta extraordinária e rara versatilidade do artista, aproveitando até as magníficas descobertas no seu arquivo feitas pela sua neta Mariana Manta Aires desde 2023 (como todos os desenhos feitos pelo artista durante a sua estadia na prisão de Caxias em 1948, ou a maqueta de um cartaz revolucionário que nunca pôde ser impresso), e das quais pude retirar informação preciosa para os dois catálogos de 2024 e este livro que agora saiu.
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Pedro Piedade Marques
Bonecos para o Povo. João Abel Manta, Artista Revolucionário
Tinta-da-China 32,90€
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