Maggie O’Farrell: Perante a morte de um filho


CRÓNICA
|agostinho sousa

Como se lê na contra-capa: «Hamnet é um romance sobre o filho de Shakespeare. Mas esse é apenas o ponto de partida para Maggie O’Farrell construir uma obra actual, que interroga a origem da dor e envereda por caminhos menos conhecidos do amor e da maternidade».Engane-se quem pega neste livro para saber algo mais do Shakespeare escritor. Fiquemos pela nota histórica apresentada como preâmbulo do livro: «Na década de 1580, um casal que vivia na Henley Sreet, em Stratfod, teve três filhos: primeiro Susanna, e depois Hamnet e Judith, que eram gémeos. O rapaz, Hamnet, morreu em 1596, aos onze anos. Cerca de quatro anos depois, o pai escreveu uma peça chamada Hamlet.»
Com esta indicação, está dado o mote: Hamnet, as vivências deste rapaz como tantos outros da sua idade, as suas brincadeiras e obrigações de habitar com a sua mãe e irmãs em casa dos avós paternos. O seu pai será uma figura distante, algures em Londres, num mundo que existe na sua mente, como lhe diz Agnes pouco depois da morte do filho de ambos: «o lugar que tens na cabeça. Vi-o uma vez, há muito tempo, uma região inteira, uma paisagem. Foste para esse lugar e agora ele é mais real para ti do que qualquer outro. Nada te pode afastar dele. Nem a morte do teu próprio filho. Eu vejo isso.»
Shakespeare, enquanto jovem, é visto pelo pai e pela vizinhança como um falhado que não consegue um ofício decente. Será Agnes, a sua mulher, que o escolherá e, perante a incompreensão do irmão desta, ela afirma que aquele homem tem mais coisas escondidas dentro de si do que qualquer outra pessoa que já conheceu. Porém, mesmo com o dom da adivinhação, Agnes será traída pela morte do seu filho, porque os seus indícios apontavam para outro fim.
Até lá ela vai conquistando o seu lugar numa família que a aceita com dificuldade, como desabafa: «a casa de Henley Street tem uma estrutura diferenciada: há os pais, depois os filhos, depois a filha, a seguir os porcos na pocilga e as galinhas no galinheiro, depois o aprendiz e só depois, mesmo no fundo, as criadas de servir. Crê que a posição que ocupa, como nora recente, é ambígua, algures entre o aprendiz e as galinhas.» Para isso contribui alguma da sua excentricidade, o facto de ser mais velha do que o marido e, fundamentalmente, por terem sido obrigados a casar quando tiveram conhecimento de que estava grávida.
As relações entre esta família, as adivinhações de Agnes, o permanente medo da peste e um crescente aumento da importância de um homem que quase ninguém estimava e que, estranhamente para todos, à exceção da sua mulher, vai singrando, algures em Londres, são a malha que se vai tricotando numa leitura onde as relações humanas sobressaem, apanham o leitor e o deixam a matutar.
Saber que aquele filho irá morrer, logo na primeira página, torna a chegada ao fim do livro ainda mais trágica. «Como podiam saber que Hamnet era o prego que as unia [mãe e irmãs]? Que sem ele se fragmentariam e se fariam em cacos, como um copo que se despedaçou no chão? O marido, o pai, passeia pela sala do piso inferior, na primeira noite e na seguinte. Agnes ouve-o lá de cima, do quarto. Não há mais nenhum som. Nem choro, nem soluços, nem suspiros. Só o arrastar e o baque dos seus pés inquietos, a andar, com alguém à procura do caminho para regressar a um lugar, cujo mapa perdeu.»
Sabe-se que não há uma palavra que defina um pai ou uma mãe perante a morte prematura de um filho, mas Judith, a irmã gémea e muito próxima de Hamnet, vai mais longe ao perguntar à mãe: «Qual é a palavra […] para quem tinha um gémeo mas agora já não tem? A mãe mergulhando um pavio dobrado, duplo, sem sebo aquecido, imobiliza-se mas não se volta. Se fores uma esposa, continua Judith, e o teu marido morrer, é viúva. E, se os pais morrerem, uma criança passa a ser órfã. Mas qual é a palavra para aquilo que eu sou? Não sei, diz a mãe. Judith observa o líquido a escorrer das pontas dos pavios, para a tigela que está por baixo. Se calhar não existe, alvitra. Se calhar, não, diz a mãe.»
Espinho, 13/03/2022
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Maggie O’Farrel
Hamnet
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