Marli Vitorino: Dar sentido às coisas

1-Qual foi a origem deste seu livro “O Outro Lado da Pandemia”?
R-Este projeto nasceu em março de 2020, através do desenho que surgiu como “refúgio” nos primeiros dias de pandemia vivida enquanto enfermeira de Cuidados Intensivos, que cuidava de pessoas com COVID-19, em estado grave. De um dia para outro, fomos desafiados a recolher os medos e a enfrentar as dificuldades que surgiam em catadupa, para fazermos aquilo que melhor sabemos, cuidar! Contudo, foi um grande desafio gerir as emoções e sentimentos inerentes, especialmente quando entrava na zona vermelha (zona restrita onde estão as pessoas com COVID-19). Num dos primeiros dias desta nova realidade, o turno estava calmo na zona vermelha, mas o desconforto provocado pelo fato, máscara e óculos era cada vez maior, desacelerando a noção do tempo e aumentando a sensação de falta de ar e ansiedade a cada segundo! Quase num gesto automático, peguei numa caneta e numa folha de papel e comecei a desenhar! Traços que expressavam o que via e sentia, para me tentar abstrair-me da sensação de sufoco e desconforto! Após terminar, fixei o desenho no vidro da porta, que separava a zona vermelha da zona não contaminada, com o objetivo de encorajar os colegas que viriam a seguir. Atrás de um desenho veio outro e mais outro, surgindo assim a minha terapia em tempo de pandemia!

2-Porque usou textos e desenhos?
R-Os desenhos surgiram na procura de apaziguar o stress, dar sentido às coisas, àquilo que sentia, ao cansaço, à adrenalina, à responsabilidade de um cuidar altamente diferenciado e humano, inerentes às situações vividas para lá das portas dos Cuidados Intensivos, que de alguma forma foram significativas e marcantes durante a prestação de cuidados. Aos desenhos, acrescento reflexões que dão “voz” às emoções e sentimentos vividos em cada traço, cada traço que traduz uma realidade, uma experiência, uma perspetiva de quem cuida e de quem é cuidado, desmistificando uma realidade que poucos conhecessem. As perspetivas do desenho revelam-se de forma espontânea, por vezes no meu olhar enquanto enfermeira, outras vezes no lugar de um médico, de uma assistente operacional, de uma técnica de limpeza, mas também no lugar da pessoa com COVID-19 e da sua família! Na sua essência, os desenhos e as reflexões possuem uma mensagem a transmitir às famílias de quem cuidamos, um relato na primeira pessoa e de quem está na linha da frente, fazendo parte de um grande grupo de profissionais de saúde que todos os dias lutam por zelar pelo bem mais precioso, a vida de Outro Alguém, com segurança, esperança e coragem!

3-Como é que a pandemia mudou a sua vida profissional?
R-Face às experiências desafiantes e enriquecedoras vividas ao longo desta pandemia, sinto que cresci muito a nível profissional, nutrindo cada vez mais esta paixão de ser enfermeira como uma oportunidade de abraçar novos desafios a cada dia que passa, numa relação extraordinária que se estabelece com quem se cuida, cheia de aprendizagens, partilhas, conhecimentos, experiências, de sorrisos e de lágrimas, de momentos alegres, outros difíceis e sempre desafiantes! Uma realidade jamais imaginada que me forçou a refletir sobre a importância da readaptação face aos desafios e necessidades e sobre a essência do cuidar com humanidade, que pressupõe ingredientes essenciais como o espírito de equipa, a comunicação, o respeito e o companheirismo! Essencialmente, esta pandemia, tem-me ajudado, sobretudo, a ser mais humana, mais enfermeira, valorizando o que realmente importa na vida, as relações humanas, os afetos, a proximidade… sobre a cumplicidade e a relação de ajuda que fazem com que as pequenas coisas tornem o dia de quem é cuidado mais brilhante, transformando os momentos mais difíceis em experiências de resiliência, coragem e superação!
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Marli Lopo Vitorino
O Outro lado da Pandemia
Chiado Editores  15€

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