Quanto de Brasil há em Alexandra?

CRÓNICA
| Rui Miguel Rocha

Quanto de Alexandra há no Brasil? Quanto de Brasil há em Alexandra? Mais um relato(s) impossível de deixar a meio, impossível de esquecer.
A partida de Lisboa: “o frio vê-se quando respiramos”. E já no táxi do Rio: “levada por um taxista que se chamava Mozart. No Rio é tão fácil conhecer um Mozart como um Marconi.” No Brasil toda a gente sabe que “ um corpo não escolhe os espíritos, os espíritos escolhem um corpo.”
E começa a música, que vai passar por tantos, mas no início foi: “todos concordámos que a voz de Milton era um milagre.”
Música e Deus, será esse um resumo do Brasil? De facto: “continuo sem encontrar um brasileiro ateu” e a “felicidade é uma rua a sambar, não tem idade, não tem peso, não tem dor.”
A crónica linda das meninas do Rio com Clarice sempre presente – em todo o livro é como uma musa de assombro. E a música sempre e Vinícius. E Caetano no Complexo do Alemão: “amor não tem fracasso. Se foi fracasso não tinha amor.”
Outra crónica inesquecível: “A Amazónia no cais”, e à frente: “gente!, carimbó é dança de cortejar, homem batendo palmas para a mulher, depois rodopiando em torno dela de braços levantados, e ela rodopiando em torno dele, e é isso que todo mundo está a fazer, numa alegria de quem ressuscitou.”
Ainda a Amazónia e um dos seus poetas, Vicente Franz Cecim que “a propósito da criação em geral, remata: ‘Só houve primeiro dia, o resto é repetição.’” E mais do poeta: “O prédio dos suicidas” e ainda: “‘ temos uma manga e cem periquitos comendo ela’, recomeça o poeta. ‘Mil mangas em volta, mas eles comem todos a mesma, porque estraga muito cada um comer uma. É uma inteligência ecológica, uma intimidade com a natureza. ‘Assim viveu a Amazónia até chegarem os brancos, eis o ponto.’” Vicente parece uma personagem inventada, transformou a Amazónia em Andara, com uma inscrição à entrada contrária à de Dante: “Ó vós que entrais, trazei toda a esperança.” E escreveu: “Nos recusemos às cinzas. Cintilemos. Tentemos, ainda uma vez, permanecer no lugar mágico em que a vida nos lançou.”
E ainda o Brasil antes de nós: “enquanto os brancos acreditam que tudo é animal (todos os homens são animais na origem), os índios acreditam que tudo é humano (todos os animais são homens na origem).”
A origem do rio que o padre António Vieira denominava Rio das Amazonas: “O Rio Negro nasce na Colômbia e vem, Amazónia abaixo, até Manaus, onde encontra o seu camarada Solimões, para juntos formarem o Amazonas.”
E um poema da Alexandra: “Os mortos estão sempre entre nós. São eles que revelam o presente. Os índios sabem disso, e também sabem que os brancos não acreditam nisso, porque de outra forma não teriam matado como mataram. Quem já esteve em terras indígenas viu: os índios não abrem os braços para nós porque os mortos estão vivos neles. Na lógica dos índios, comer os mortos é dar-lhes vida. A quem vem depois resta aprender a falar com eles.”
Tudo passa rápido, até no Brasil “A juventude é o mais cruel dos meses.”
As favelas, Rio Sul e Rio Norte, o traficante: “É muito ruim a vida do crime. Eu e um monte queremos largar. Bom é poder ir à praia, ao cinema, passear com a família sem medo de ser perseguido ou morto. Queria dormir em paz. Levar meu filho ao zoológico.”
Ainda a música e Chico Buarque: “ ele é o exilado, o retirado, o pé de Garrincha e o morro de Cartola. É a ‘Teresinha’, a Ana de Amesterdã, a Geni do Zepelim, que até se chamava Genival e era travesti.”
Ainda tanto dentro do livro, dentro desse mágico Brasil, mas acabo “continuando a celebrar o escândalo de estarmos vivos.”
Grande Alexandra.
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Alexandra Lucas Coelho
Vai, Brasil
Editorial Caminho

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