
[Fotografia: Teresa Trindade] 1-Qual a ideia que esteve na origem deste vosso livro Querido Pai: Uma Conversa Entre Ausentes – Cartas de Guerra 1961-1975?
R-O livro Querido Pai: Uma Conversa Entre Ausentes – Cartas de Guerra 1961-1975 surge na sequência da publicação do livro da Joana, Sinais de Vida, no qual é analisada a correspondência trocada durante o período da guerra colonial, abrangendo cerca de 4.400 cartas e aerogramas. Neste conjunto de cartas e aerogramas não há nenhuma escrita ou enviada para crianças e jovens. Foi este o desafio que nos propusemos concretizar: encontrar e analisar as cartas trocadas entre pais e filhos/as enquanto os pais estavam ausentes na guerra. Sabíamos que o universo seria bastante menor, porque, no geral, apenas os oficiais de carreira, que faziam mais de uma comissão, tinham filhos. E mesmo nestes casos, muitos não se corresponderam com os filhos, nalguns casos porque estes ainda eram pequenos e não sabiam ler ou porque as famílias os acompanharam nas comissões. Por isso, como refere o Coronel Aniceto Afonso, no prefácio: «a amostra não é muito vasta, mas reflete perfeitamente as relações e os sentimentos desse tempo de ansiedade, em que a ausência dos pais é o tema dominante.» Daí o título Querido Pai, porque era desta forma que as crianças começavam as cartas e os aerogramas que escreviam aos pais.
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Este livro conta uma história
que em geral fica por contar
e que é a vida das pessoas comuns.
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2-De que forma este livro permite também compreender melhor a guerra colonial portuguesa?
R-A guerra colonial envolveu uma grande parte da sociedade portuguesa e deixou marcas muito profundas que vão surgindo após longos anos de esquecimento, nem sempre de forma pacífica e consensual. A história deste período é, em geral, baseada em documentos oficiais e na ação das elites – políticas, militares e religiosas. No entanto, contar com as memórias e as narrativas das pessoas comuns permite perceber, de forma clara, como foi vivido e sentido este acontecimento maior da história recente de Portugal. Ter a possibilidade de utilizar cartas, diários, gravações, depoimentos, fotografias, entre outras formas de conservação das memórias individuais, acrescenta uma riqueza e um detalhe extraordinários à narrativa histórica da guerra e desse período. Estes pormenores vão permitir perceber aquilo que podemos designar como a espessura do Estado Novo, com o seu cortejo de proibições, humilhações e desconsiderações, bem como a pobreza real de um país que em 1960, um ano antes do início da guerra, apresentava 33,1% de analfabetos, 70% de alojamentos sem água canalizada, 80% sem banho, 60% sem electricidade e sem acesso a esgoto, a esperança de vida mais baixa da Europa, para falar apenas em alguns indicadores que já esquecemos. Este livro conta uma história que em geral fica por contar e que é a vida das pessoas comuns.
3-Nem todas as cartas são escritas por crianças mas o vosso livro amplifica a estas suas vozes: neste âmbito, o que mais vos marcou durante o processo de pesquisa efectuado?
R-Surpreendeu-nos o silêncio que existiu e que perdurou nas famílias. Na maior parte dos casos, os pais não falaram e os filhos não perguntaram. Muitos só agora revisitaram as suas memórias através da re-leitura da correspondência então trocada. Muitos confessaram-nos ainda não o conseguirem fazer e surpreenderam-se pela emoção com que falaram sobre este período. Sobretudo da lembrança – aqueles que a tinham – da partida do pai. Na leitura da correspondência, o que mais nos marcou foram as estratégias encontradas pelos pais para manter a ligação aos filhos, no fundo, para se manterem pais, e para assegurarem que estes se lembravam deles. Daí a pergunta frequente: «Ainda te lembras de mim?» ou «Ainda sabes quem eu sou?» E de facto, muitos não reconheceram os pais quando estes regressaram. Marcou-nos igualmente descobrir nos aerogramas e cartas escritos pelos pais e nas fitas gravadas que enviavam, formas de comunicação adequadas às idades dos filhos: desenhos, cartas escritas em letras de imprensa, exercícios de matemática, contos. Como um filho nos disse, uma versão escrita do filme A Vida é Bela.
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Ana Vargas/Joana Pontes
Querido Pai: Uma Conversa Entre Ausentes – Cartas de Guerra 1961-1975
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